Extinção da morte natural
Discussões bioéticas a respeito da terminalidade da vida, no Brasil, estão defasadas e comprometidas por maniqueísmos.
Esses preconceitos prejudicam a construção de diretrizes que poderiam tratar doentes terminais de forma mais humanizada, levando ao chamado "morrer bem", ou "boa morte".
"O atraso na agenda bioética brasileira é gritante," diz Henrique Moraes Prata, que estudou a forma como a morte vem sendo encarada nos hospitais e pela sociedade como um todo.
Para ele, a obstinação terapêutica com relação aos pacientes terminais fere princípios de direitos da personalidade.
Dados do Ministério da Saúde mostram que 74% das mortes no Brasil ocorrem em ambiente hospitalar. "Com filtro oncológico, sobe para 82%", diz Henrique.
Esses números causam reflexão diante da ideia de "morte natural" presente no conceito de ortotanásia.
O termo abrange definições que implicam em um fim de vida digno e sem interferência tecnológica desnecessária.
Dificuldade para morrer
Com as possibilidades atingidas pela medicina, a morte em momento natural tornou-se quase que uma exceção, segundo Henrique.
O pesquisador analisa a ideia do que seria o tratamento adequado para pacientes terminais.
"Cuidar é pensar a pessoa como um ser único, com suas características individuais preservadas, e não investir em cuidados despersonalizados como se o paciente fosse apenas um conjunto de sintomas", diz. "Existe um contrassenso que a sociedade medicalizada impõe às pessoas: ao longo da existência saudável, um aumento substancial dos fatores de qualidade e expectativa de vida (feliz); ao final, dificuldades para se morrer com dignidade".
Diante deste paradoxo, Henrique propõe debater a legislação específica para garantir morte digna à pessoa enferma em fase terminal, e evitar procedimentos dolorosos e desproporcionais, caracterizadores do que se costuma chamar de futilidade terapêutica.
Ele propõe reflexões baseadas no conceito da ética de Emmanuel Lévinas, que o define não com a visão individualista comum, mas com o conceito de alteridade, no qual "o rosto do outro é o meu próprio reconhecimento".
Cuidados paliativos
Desde 2002, a Organização Mundial de Saúde define os cuidados paliativos como um elemento essencial da composição do tratamento do doente numa abordagem multidisciplinar que lhe garanta qualidade.
Henrique diz que, em cuidados paliativos, substitui-se a esperança na recuperação por novas esperanças, como o controle de sintomas, o bem-estar integral e a dignidade do enfermo e também de sua família.
Não há que se falar em "encurtamento da vida, uma vez que essa já estaria no seu esgotamento natural. É a qualidade da vida que resta que deve ser garantida", diz.
O Conselho Federal de Medicina (CFM), em 2006, dispôs sobre a ortotanásia e, em 2012, sobre diretivas antecipadas por meio das quais a pessoa esclarece seu desejo acerca de tratamentos de saúde futuros.
Existe também o projeto de lei 6.715 de 2009, que trata sobre a adoção da ortotanásia e de cuidados paliativos. No entanto, a tramitação está parada em razão do posicionamento conservador do Poder Legislativo.
Henrique diz que as discussões sobre o tema estão distanciadas do interesse público e prejudicam a análise desta questão que traz sérias implicações para o SUS. "Cuidados paliativos se caracterizam por baixo custo e elevado afeto, conceito muito mais afeito a uma política de saúde pública, que tem seu centro na pessoa", diz.
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