Terapia gênica
Há duas décadas, a expressão "doping genético" poderia perfeitamente figurar entre os delírios de um roteirista de filme de ficção científica. Agora, o termo já é corriqueiro em meios científicos e nos fóruns das instâncias esportivas.
A possibilidade do doping genético surgiu paralelamente aos estudos envolvendo a chamada terapia gênica, que consiste na manipulação do DNA das células do organismo com o objetivo de prevenir ou tratar doenças.
Tal procedimento é realizado utilizando vetores virais ou não virais que transportam genes sintéticos para o núcleo das células-alvo. Ali, integrado ao material genético celular, esses genes podem ser transcritos.
Suponha, por exemplo, que um indivíduo sofra de uma insuficiência renal. O desenvolvimento de lesões nas células do rim resulta na geração de quantidade insuficiente de determinado hormônio, fundamental para a produção das células do sangue.
Por meio da terapia gênica, um vírus poderia ser usado para introduzir uma cópia artificial do gene responsável pela produção deste hormônio, por exemplo, no tecido muscular esquelético. Este passaria a cumprir o papel das células do rim, compensando a deficiência.
Diversos pesquisadores depositam na terapia gênica a esperança de encontrar novos tipos de tratamento ou até a cura para doenças como distrofias musculares, fibrose cística, fenilcetonúria, cânceres e disfunção endotelial.
Mas, e se essas mesmas técnicas, forem utilizadas para duplicar os genes no organismo de um atleta, fazendo-o produzir duas vezes mais um hormônio? É exatamente essa possibilidade que acendeu o sinal de alerta no Comitê Olímpico Internacional (COI).
O doping genético difere nos meios, mas busca alcançar os mesmos fins que o doping convencional. É o que afirma Rodrigo Dias, doutor em Biologia Funcional e Molecular pela Unicamp e pesquisador da área de genética e performance física humana.
Doping convencional
"O doping convencional consiste na utilização de drogas que amplificam uma função do organismo além do limite fisiológico", explica ele. Na maioria das vezes, o uso dessas substâncias tem como objetivo aumentar a potência ou a resistência física dos atletas.
A forma mais usual para incrementar artificialmente a potência atlética consiste na utilização dos chamados esteroides anabólicos androgênicos, os anabolizantes. São substâncias que contêm hormônios como a testosterona, o IGH e o IGF, responsáveis por induzir a hipertrofia muscular, aumentando a potência do corpo.
No caso do doping voltado para amplificação da resistência, geralmente se usa o hormônio eritropoietina recombinante. A substância estimula a produção de glóbulos vermelhos que, por sua vez, aumentarão o transporte de oxigênio pelo organismo e alterarão a dinâmica da respiração celular.
Como consequência, a fadiga dos músculos é mais demorada. É um método utilizado principalmente em provas de média a longa duração de modalidades como a natação, o ciclismo e o atletismo. Segundo Rodrigo Dias, não se sabe exatamente o real ganho provocado por essas substâncias. "Como são procedimentos realizados às escuras, há pouca fundamentação científica", avisa.
Doping genético
Para Rodrigo Dias, o doping genético nada mais é que uma versão high tech dos procedimentos convencionais. Em vez de utilizar versões sintéticas de testosterona ou eritropoietina, são adicionadas novas cópias de genes ao DNA das células, que produzirão esses hormônios em maior quantidade.
"O objetivo é simplesmente driblar a fiscalização. As substâncias sintéticas são detectadas pelos exames implementados. A partir do momento em que os hormônios são produzidos por genes artificiais, torna-se necessário buscar outros métodos de controle", explica ele.
Existem modalidades esportivas nas quais o sucesso depende quase exclusivamente da performance física. No atletismo, por exemplo, vence os 100 metros rasos quem consegue extrair a maior potência e força no mínimo intervalo de tempo.
Mas o que dizer do futebol, do handebol e do basquete, em que jogadores com pouca massa muscular e nem tão velozes, muitas vezes, se destacam da média?
"São modalidades marcadas por elevado grau de imprevisibilidade. Não é possível adivinhar, por exemplo, em qual direção o adversário tentará o drible. Nesse tipo de esporte, atletas mais habilidosos podem ter sucesso sem atingir o auge da sua performance física", analisa Rodrigo Dias.
Interação genética-ambiente
Toda atividade do corpo humano é resultado da interação genética-ambiente, embora o grau de influência de cada componente varie de acordo com a situação. É por isso que o doping gera maior desequilíbrio em determinadas modalidades. Quando os atributos físicos são essenciais, a utilização de hormônios sintéticos pode ser mais determinante para o resultado.
Ainda assim, não é suficiente segundo o pesquisador Mark Frankel, especialista em modificação genética e bioética da Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAS) e colaborador da Agência Mundial Antidoping (WADA). "Mesmo fazendo uso do doping, dificilmente um atleta vai alcançar bom desempenho se não houver combinação com fatores externos, tais como treinamento rígido e dieta adequada", ele assinala.
Entretanto, em esportes que dependem fundamentalmente da habilidade do atleta - tais como o futebol, o handebol e o basquete - o uso de substâncias proibidas tende a ter menor influência, embora não deixe de criar um desequilíbrio.
Mas o doping genético permite, pelo menos em tese, uma nova modalidade de otimização do desempenho que poderá ter impacto exatamente nesse tipo de esporte. Isso porque a ciência já tem conhecimento de genes que influenciam as conexões neurais. "Podemos supor que, se duplicarmos esses genes, aceleramos os processos cognitivos. O atleta passa a pensar mais rápido e consegue tomar decisões num tempo mais reduzido", conta Rodrigo Dias.
Detecção do doping genético
A primeira vez que o COI levantou a discussão sobre a possibilidade de manipulação da genética de atletas foi em junho de 2001, durante o encontro Terapia gênica e seu futuro impacto no esporte. Dois anos mais tarde, a WADA incluiu o doping genético na lista dos procedimentos proibidos nos esportes olímpicos.
Em 2004, a prática foi definida como "uso não terapêutico de células, genes, elementos genéticos ou a modulação da expressão gênica, que tenham a capacidade de melhorar o desenvolvimento esportivo".
A preocupação das autoridades do COI e da WADA é encontrar formas de fiscalização e controle a tempo de evitar os primeiros casos de doping genético. "Os investimentos e o estímulo a diversos grupos de pesquisa internacionais permitiram alguns progressos", conta Mark Frankel.
Um passo decisivo foi dado no final de 2010, quando cientistas das universidades de Tübingen e Mainz, na Alemanha, desenvolveram um exame de sangue capaz de identificar a transferência de genes artificiais para a musculatura esquelética. Avanços também foram anunciados por pesquisadores das universidades da Flórida, nos EUA, e de Nantes, na França.
Eles descobriram características peculiares que distinguem as proteínas produzidas a partir dos genes manipulados. A diferença é detectada quando se observam os padrões de glicosilação, processo em que as moléculas de glicose que flutuam no sangue se ligam a moléculas de proteína.
Ainda não há registro de casos de uso do doping genético. Mas, como também não existem meios eficazes de controle e detecção, não se pode afirmar com segurança que nenhum atleta o tenha experimentado.
Mark Frankel acredita, no entanto, que os primeiros casos comprovados ainda vão demorar a surgir. "Embora seja possível que atletas utilizem o doping genético nas Olimpíadas de Londres, o mais provável é que isso aconteça nas Olimpíadas do Rio, em 2016", opina o pesquisador.
Efeitos danosos da terapia genética
As técnicas derivadas da terapia gênica estão em fase apenas inicial de experimentação. Não existe, atualmente, liberação para nenhum tipo de uso clínico. Somente pesquisas autorizadas e com consentimento dos pacientes podem fazer testes em organismos humanos. Os estudos com terapia gênica já envolveram mais de três mil participantes em todo o mundo e têm apresentado resultados animadores. Ainda assim, alguns casos com efeitos colaterais geram preocupações.
Em 1999, testes com terapia gênica levaram à morte um rapaz de 17 anos portador de um distúrbio metabólico. Seu organismo apresentou uma séria reação imunológica ao vetor viral. Experimentos mais recentes, realizados na França e na Inglaterra, envolveram 20 crianças que sofriam de Imunodeficiência Combinada Severa (SCID).
Cinco desenvolveram sintomas semelhantes aos da leucemia, e uma delas morreu. Outras experiências resultaram em metagênese insercional, isto é, implantação do gene artificial em localidades inapropriadas no DNA. A condução de testes sem o devido zelo, facilitando a contaminação dos vetores, também pode ser fatal.
Se os cientistas consideram que todo cuidado é pouco, o mesmo não acontece com alguns atletas. No mundo esportivo, há quem esteja disposto a uma aposta cega. "Existe um assédio oculto à comunidade científica. Embora minha linha de investigação seja o rastreamento de genes com potencial de modular a performance física humana, tenho recebido, com relativa frequência, ofertas de atletas prontos a se submeterem a experiências", lamenta Rodrigo Dias.
A genética que não dopa
Pesquisas em genética certamente terão impactos significativos no esporte. Já foram identificados cerca de 300 genes associados à saúde e ao bom condicionamento físico. Futuramente, esse conhecimento permitirá a seleção de atletas para cada esporte.
Mapear o genoma será tão rotineiro quanto um exame de Raio-X e, em consequência, não será difícil identificar uma criança com potencial para se tornar esportista de ponta. Além disso, os programas de treinamentos poderão ser elaborados com base na predisposição genética de cada atleta.
A própria terapia gênica poderá ter aplicações no esporte que não configurem doping genético. Existe a possibilidade do desenvolvimento de técnicas voltadas para o reparo de lesões e para a redução do tempo de recuperação dos atletas. As células de um músculo lesionado poderiam, por exemplo, receber adição de um gene que lhes permitisse produzir substâncias voltadas para o reparo da lesão.
A ética esportiva vigente aprova esse tipo de procedimento? "Do meu ponto de vista, qualquer tipo de tratamento que não altere ou aprimore o estado original da pessoa é bem-vindo. Isso vale para a terapia gênica", opina Mark Frankel. O problema está justamente aí: uma vez alteradas geneticamente, tais células produzirão as substâncias mesmo após a recuperação, o que pode ocasionar melhora do desempenho do atleta. Estaria assim configurada uma situação de doping genético.
Seria possível "desligar" o gene após o reparo da lesão? Segundo Rodrigo Dias, algumas experiências conduzidas em ratos permitem acreditar que sim. "Podem-se alocar esses genes artificiais numa região promotora, isto é, que precisa de uma droga específica para ser ativada. Quando essa droga é injetada no sangue, o gene se torna ativo.
Do contrário, ele não se manifesta", explicou o pesquisador. Mas o funcionamento desse processo no organismo humano ainda é objeto de mera especulação. E mesmo que se torne viável, ficaria no ar uma outra questão. Como fiscalizar se o gene está ativado ou desativado?
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