Micose sistêmica
Paracoccidioidomicose (PCM) - este é nome científico da micose sistêmica, isto é, que ataca órgãos internos do corpo, que mais ocorre na América Latina.
Mas, ainda que a PCM seja conhecida há mais de um século - o primeiro caso foi descrito em 1908 pelo médico Adolfo Lutz (1855-1940) -, até hoje pouco se conhece sobre a ecologia do fungo que causa a doença.
Micose e clima
Agora, utilizando dados epidemiológicos e climáticos, um grupo interdisciplinar de pesquisadores brasileiros aplicou métodos estatísticos para criar um modelo capaz de avaliar a influência do clima na variabilidade da doença.
O trabalho se baseou em casos ocorridos entre 1969 e 1999 na região de Botucatu (SP), que é uma área considerada hiperendêmica. A PCM, também conhecida como blastomicose sul-americana, ou doença de Lutz-Splendore-Almeida, é endêmica na América do Sul.
A pesquisa, cujos resultados foram publicados na revista International Journal of Epidemiology, da Universidade de Oxford, concluiu que a presença do fungo cresce, a longo prazo, quando há um aumento da armazenagem de água no solo.
E, a curto prazo, há maior liberação de esporos quando aumenta a umidade absoluta do ar. A PCM afeta especialmente trabalhadores agrícolas e indivíduos que lidam diretamente com a terra contaminada com os esporos do fungo.
Fungo causador da micose
De acordo com a primeira autora do artigo, Ligia Barrozo, professora da Universidade de São Paulo (USP), o agente da PCM, o Paracoccidioides brasiliensis, raramente tem sido identificado na natureza e não havia estudos correlacionando a incidência da doença com variáveis climáticas.
"Existem evidências de que as pessoas adquirem a doença por inalação dos esporos do fungo provenientes do solo. Mas há grande dificuldade para se isolar o fungo do solo e, por isso, não conhecemos muito bem a ecologia desse agente, ou seja, não sabemos quais são os ambientes mais favoráveis para seu desenvolvimento e por que algumas regiões têm incidência maior, por exemplo", disse Ligia à Agência FAPESP.
Segundo ela, a doença, em sua forma crônica, pode demorar várias décadas para se manifestar, o que dificulta os estudos, já que um indivíduo infectado pode ter adquirido a micose em outra época, em locais muito diferentes. Por isso o estudo foi focado na forma aguda, que se manifesta no máximo em 11 meses.
Dados epidemiológicos
"Utilizamos dados epidemiológicos de uma região endêmica importante, que é a de Botucatu, e analisamos 91 casos ocorridos em 40 anos. A partir das datas das ocorrências, procuramos correlações com diversas variáveis que estavam disponíveis no período estudado: precipitação, temperatura do ar, armazenamento de água no solo e umidade absoluta e relativa do ar", afirmou.
Com isso, os cientistas chegaram a um modelo que explica, em 49% dos casos, a variação de incidência, tendo em conta a umidade absoluta do ar e o armazenamento de água no solo nos dois anos anteriores às infecções.
"Há uma série de outros fatores, além do clima, que explicam a ocorrência da doença. Portanto, a correlação da ocorrência da doença com os fatores climáticos em 49% dos casos foi algo estatisticamente bastante significativo", explicou Ligia.
Mudanças ambientais
A partir do modelo, a equipe procurou explicar qual seria o significado biológico, para o fungo, da correlação entre a incidência e as condições climáticas. "Vimos que o aumento da umidade absoluta do ar no ano da infecção é importante para a liberação de esporos do fungo. Mas, quando há um aumento da precipitação dois anos antes da infecção, a umidade no solo cresce e o fungo se desenvolve ainda mais", disse.
Segundo Ligia, a principal contribuição do desenvolvimento do modelo consistiu em verificar que mudanças ambientais rotineiras podem alterar a incidência de doenças como a PCM.
"Há estudos mostrando, por exemplo, que as mudanças climáticas têm impacto sobre a dengue e a malária. Nosso trabalho indica que alterações climáticas também podem modificar a incidência de doenças menos conhecidas, que não são transmitidas por vetores específicos, como as micoses endêmicas", disse.
Do macro ao micro
O artigo mereceu um comentário na mesma edição do International Journal of Epidemiology, feito por Dennis Baumgardner, da Universidade de Wisconsin, nos Estados Unidos.
Segundo o cientista norte-americano, o trabalho brasileiro "fornece evidências de que os fenômenos climáticos e as atividades humanas no nível 'macro' agem de forma integrada com fatores ecológicos em nível 'micro', afetando o crescimento, a disseminação e a infecção humana por fungos sistêmicos".
Baumgardner afirma ainda que estudos como esse, "se não obtiverem sucesso definitivo, no futuro, em termos de previsão e mitigação da doença, podem servir para orientar a seleção de amostras ambientais e contribuir para resolver os mistérios que cercam os nichos ecológicos desses importantes fungos".
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