03/11/2020

Ligação entre canabinoides e aprendizagem não é neural, é comportamental

Redação do Diário da Saúde

Canabinoides

Embora as pessoas rapidamente pensem em maconha ou cannabis quando ouvem falar em canabinoides, na verdade, estas moléculas existem naturalmente nos nossos cérebros, onde participam em vários processos fisiológicos e cognitivos.

Assim, quando uma pessoa usa maconha de modo recreativo e crônico, por exemplo, ela acaba alterando o equilíbrio dos canabinoides do cérebro - conhecidos como endocanabinoides -, o que pode resultar em uma série de alterações motoras e cognitivas.

Mas o contrário também é verdadeiro. Por exemplo, animais de laboratório alterados geneticamente para não terem receptores canabinoides apresentam níveis de atividade reduzidos, bem como défices de aprendizagem e de memória.

Mas como é que os "nossos" canabinoides - ou endocanabinoides, aqueles do nosso cérebro - exercem os seus efeitos na aprendizagem?

Suspeito imediato

Catarina Albergaria e seus colegas do Centro Champalimaud em Portugal decidiram abordar esta questão estudando os mecanismos cerebrais envolvidos numa forma de aprendizagem, chamada de condicionamento clássico.

Nesta tarefa de condicionamento, os animais aprendem a associar um estímulo sensorial, por exemplo, um flash de luz, com a subsequente aplicação de um sopro de ar no olho. Uma vez aprendida esta associação, o indivíduo fecha os olhos quando a luz aparece para evitar o sopro de ar. "É como o que acontece com o cão de Pavlov e o sino," compara Albergaria.

Para estudar o papel dos canabinoides na aprendizagem, a equipe usou camundongos mutantes sem receptores de canabinoides, e que por isso apresentam défices nesta forma de condicionamento clássico. Estudos anteriores mostraram que esta forma de aprendizagem ocorre numa estrutura cerebral chamada cerebelo, e que é prejudicada pela alteração da sinalização canabinoide, tanto em camundongos como em humanos.

"Muitos estudos apoiam a ideia de que os canabinoides medeiam a plasticidade neuronal, ou mudanças dependentes da experiência nas conexões entre os neurônios," explicou a professora Megan Carey. "Portanto, inicialmente pensamos que a interferência com este processo de neuroplasticidade seria o que estava causando as dificuldades na aprendizagem."

Mas, tal como num bom romance policial, o suspeito imediato acabou por não se confirmar. Quem era afinal o verdadeiro culpado? "Num estudo que publicamos há dois anos, descobrimos que, quanto mais os camundongos corriam, melhor aprendiam", explica Albergaria. A equipe começou então a suspeitar que a diferença na aprendizagem dos camundongos mutantes podia ser devida aos seus níveis de atividade reduzidos, e não a problemas causados diretamente no cérebro pela ausência dos canabinoides.

Alteração genética superada com intervenção comportamental

Novos experimentos comprovaram que os camundongos mutantes não aprendem tão bem simplesmente porque não são ativos o suficiente. Ou seja, o estado comportamental alterado dos mutantes é o grande responsável pelo fato de o condicionamento clássico cerebelar estar comprometido nestes animais. Quando as pesquisadoras forçaram os camundongos sem canabinoides a andarem numa esteira motorizada tanto quanto os camundongos normais, os resultados não se fizeram esperar: A aprendizagem foi completamente restaurada.

A equipe descobriu ainda que outros comportamentos cerebelares, coordenação locomotora e aprendizagem, eram normais nos camundongos mutantes. Além disso, o condicionamento clássico cerebelar estava totalmente intacto em camundongos que não tinham receptores canabinoides especificamente no cerebelo.

"Estas experiências apoiaram ainda mais a nossa hipótese de que a sinalização interrompida dos canabinoides prejudica a aprendizagem ao alterar o estado comportamental, e não através de efeitos diretos na plasticidade neuronal no cerebelo," diz Carey. "Existem cada vez mais evidências de que o estado comportamental influencia profundamente a função cerebral. O nosso estudo destaca a necessidade de considerarmos o estado comportamental como um poderoso meio independente através do qual os genes contribuem para comportamentos complexos."

"Fomos capazes de superar um défice de aprendizagem associado a uma mutação genética recorrendo a uma intervenção puramente comportamental," acrescenta Albergaria, sublinhando assim o impacto e potencial aplicação destas descobertas.

Checagem com artigo científico:

Artigo: Cannabinoids modulate associative cerebellar learning via alterations in behavioral state
Autores: Catarina Albergaria, N. Tatiana Silva, Dana M. Darmohray, Megan R. Carey
Publicação: eLife
Vol.: 9:e61821
DOI: 10.7554/eLife.61821
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