Quando ouvir a ciência não basta
Existem ao menos dois exemplos marcantes de "verdades científicas" que têm sido sistematicamente negadas pelos fatos: A chamada "hipótese amiloide", que não gerou nenhum benefício para os pacientes ao atribuir a doença de Alzheimer às placas de beta-amiloide, e o "caso dos protetores solares", a disseminação mundial no uso de um produto que não gerou queda nos casos de câncer de pele.
Na verdade, além de os casos de câncer de pele continuarem a aumentar, hoje se aponta o uso excessivo de protetores solares como a grande causa da deficiência de vitamina D na população.
Para entender os motivos desse descompasso entre as recomendações científicas e os resultados de saúde, cientistas da Universidade de São Paulo (USP) fizeram uma varredura em toda a bibliografia científica para integrar tudo o que se sabe até agora sobre a ação na pele humana dos chamados fotossensibilizadores endógenos.
Produzidas pelo próprio organismo quando exposto à luz, essas moléculas transformam a energia luminosa em reatividade química, provocando transformações tanto benéficas quanto prejudiciais. A equipe focou sua atenção nas conexões entre a excitação eletrônica dos fotossensibilizadores endógenos e a subsequente ativação ou o dano a biomoléculas.
Os resultados apontam para as possíveis causas do aumento contínuo dos casos globais de câncer de pele, bem como para as limitações das abordagens atuais dos protetores solares.
"Conseguimos posicionar a fronteira da fotoquímica que acontece na pele sob exposição solar. Mostramos os fotossensibilizadores e as reações. Falamos de proteínas, lipídios, carboidratos e tudo mais que tenha relevância no tema. É um artigo importante tanto pela abrangência quanto pela profundidade, e o formalismo químico está perfeito. Minha expectativa é que esse trabalho fomente mais pesquisas nessa área," disse o professor Maurício Baptista, que fez o estudo com seus colegas Erick Bastos e Frank Quina.
Dois erros
"Em termos de saúde pública, há dois problemas principais nas orientações quanto à exposição ao Sol: É um engano dizer que as pessoas podem usar protetor solar e se expor ao Sol por muito tempo; e, por outro lado, também é um engano dizer que o Sol é perigoso sempre, em qualquer condição," afirma o pesquisador.
Sobre os aspectos benéficos do Sol para a saúde, ele menciona um estudo controlado com aproximadamente 30 mil mulheres sem histórico de câncer, escolhidas aleatoriamente na população sueca, que descobriu que a baixa exposição ao Sol é um fator de risco para mortalidade por todas as causas: "Poucas coisas estudadas aumentam ou diminuem a expectativa de vida com significância estatística. O Sol é uma delas."
A ativação da vitamina D, por exemplo, depende de reações intracelulares iniciadas pela absorção de fótons UVB pelo 7-desidrocolesterol (um precursor do colesterol). Esse processo tem uma infinidade de consequências biológicas benéficas, incluindo a regulação da homeostase do cálcio e do metabolismo ósseo, a inibição da proliferação de células tumorais e a prevenção de doenças autoimunes e cardiovasculares.
Além disso, principalmente a radiação UVB e UVA, mas também a luz azul com menor eficiência, podem promover a liberação de óxido nítrico, contribuindo para a redução da pressão arterial sistêmica por meio da vasodilatação, o controle da citotoxicidade dos macrófagos e a estimulação da cicatrização de feridas.
Segundo os pesquisadores, o hábito de ficar em ambientes fechados e de evitar a exposição ao Sol resultou em uma epidemia de deficiência de vitamina D, cujo impacto financeiro só nos EUA foi estimado em quase seis vezes mais do que o gasto com doenças relacionadas à superexposição ao Sol.
Quanto ficar ao Sol?
As estimativas de tempo ideal para exposição solar variam, pois dependem da latitude, da estação do ano e das características individuais da pele. No entanto, é fácil saber quando a dose é excessiva: A pele fica vermelha. É a reação de eritema, ou queimadura solar, um mecanismo de proteção natural selecionado durante a evolução humana para evitar as consequências do excesso de exposição solar.
A vermelhidão da pele significa: Saia do Sol! Por quê? Porque essa reação surge principalmente como uma resposta fisiológica à absorção da radiação UVB pelas bases pirimídicas do DNA (citosina e timina) nas células da pele, produzindo fotoprodutos de DNA que ativam uma resposta inflamatória aguda. Esses fotoprodutos também geram mutações que, dependendo das proteínas afetadas, aumentam o risco do desenvolvimento de câncer de pele.
O uso de protetor solar evita a reação de eritema, mas não as consequências de ser superexposto à radiação UVA e à luz visível. Além disso, o protetor bloqueia os efeitos benéficos da exposição aos raios UVB.
Aliás, o famoso FPS (fator de proteção solar) não é um parâmetro preciso, pois a medição é realizada em voluntários de pele clara e utiliza apenas fontes de irradiação UVB. Consequentemente, o FPS considera apenas a proteção contra as respostas agudas da pele, ignorando todas as outras consequências positivas e negativas da exposição ao Sol.
"Infelizmente, a crença de que o FPS define e quantifica adequadamente a eficácia da proteção solar não passa de outro equívoco, que ainda ilude os profissionais de saúde e o público em geral," escrevem os autores.
Exposição ao Sol e cor da pele
Além disso, pessoas com tons de pele mais escuros dependem de resultados de testes que podem não ser totalmente aplicáveis a elas. Mesmo a classificação de Fitzpatrick (escala usada para classificar o tipo de pele em relação a sua resposta à exposição à luz solar), que varia do tipo 1 ao 4, da pele mais clara à mais escura, foi criada na década de 1970 para estimar a tolerância à radiação UV de pessoas de pele clara e só posteriormente incluiu outras tonalidades. A classificação se baseia nas respostas a um questionário simples sobre a experiência anterior da pessoa com exposição solar (queimadura solar, bronzeado, eritema, edema e desconforto e dor).
A quantidade de melanina, pigmento selecionado pela evolução para proteger a pele humana da exposição solar, é o fator determinante para a absorção e dispersão da luz visível pela epiderme e, portanto, contribui para a cor da pele humana. Mas, ainda que menos suscetíveis à radiação UVB, pessoas com tons de pele mais escuros superexpostas ao Sol vão enfrentar problemas crônicos em longo prazo, porque a penetração da luz visível é apenas parcialmente reduzida.
Segundo os pesquisadores, a melhor maneira de melhorar as estratégias de proteção solar passa pelo conhecimento das propriedades dos fotossensibilizadores descritos neste trabalho e das transformações químicas e biológicas induzidas pela luz, que podem ocorrer durante e após a exposição da pele humana ao Sol, com e sem aplicação dos bloqueadores solares atualmente utilizados.
"Uma compreensão mais profunda das interações entre a luz solar e a pele de diferentes tipos abrirá caminho para estratégias inovadoras de cuidados com a pele que não envolvam somente evitar os efeitos maléficos, mas que também considerem os efeitos benéficos da exposição solar, e para o desenvolvimento de produtos de proteção solar adaptados a tipos específicos de pele," escreveu a equipe.
Efeitos do Sol na pele
A pele humana é formada por três camadas: epiderme, derme e hipoderme. A luz atinge profundidades diferentes do tecido, dependendo do comprimento da radiação, das características das espécies absorventes presentes e das propriedades ópticas da pele. Raios ultravioleta B (UVB), que representam cerca de 5% da radiação UV que chega à Terra, penetram apenas nas camadas mais superficiais (epiderme), mal alcançando a derme. Os raios ultravioleta A (UVA) e a luz visível atingem a camada celular basal e a derme e são absorvidos por fotossensibilizadores endógenos.
De acordo com os pesquisadores, a luz visível representa cerca de 47% da radiação solar total que atinge a pele humana e é a faixa espectral que forma os maiores níveis de radicais livres sob exposição solar, respondendo por 50% do total.
Embora a radiação UVB seja considerada mais deletéria, por ser absorvida diretamente pelo DNA, o estudo mostrou que a fotossensibilização permite que a luz visível e a radiação UVA produzam grandes efeitos na pele. As oxidações fotossensibilizadas são reações provocadas pela interação da luz com uma molécula fotossensibilizadora na presença de oxigênio.
A radiação UVA causa tanto fotodano direto quanto reações de oxidação fotossensibilizadas, que podem comprometer a viabilidade de células localizadas muito mais profundamente na pele e nos olhos. Isso pode ocorrer por vários mecanismos, incluindo peroxidação lipídica (oxidação de lipídeos por peróxido), dano ao DNA e ativação de vias de sinalização pró-inflamatórias, levando à disfunção celular, inflamação e risco potencialmente aumentado de distúrbios cutâneos e oculares, como ceratose actínica, fotoenvelhecimento, carcinoma basocelular, carcinoma de células escamosas, catarata e degeneração macular relacionada à idade.
A luz visível, principalmente no intervalo do violeta ao azul, também atinge os fotossensibilizadores endógenos na derme e até tecidos e órgãos mais profundos do corpo, podendo levar a danos ao DNA. Mesmo a melanina, que é o pigmento responsável pela coloração da pele e pela proteção contra os raios UVB, pode causar estresse oxidativo e lesões indiretas ao DNA em reações de fotossensibilização induzidas pela luz visível. "Interessantemente, a luz pode ser também usada para tratar doenças e, por penetrar mais profundamente na pele, a luz visível hoje é usada para tratar muitas doenças," destacou Baptista.
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