16/11/2010

Por que alguns medicamentos não funcionam?

Isabel Gardenal - Jornal da Unicamp

Polimorfismos

Um dos maiores gargalos da indústria farmacêutica está no controle dos polimorfismos nos medicamentos, a tendência de uma substância se cristalizar em diferentes estados.

A sua presença em um mesmo fármaco pode alterar algumas propriedades físico-químicas da substância, como a solubilidade, afetando o seu perfil de dissolução.

Quando não controlados, os polimorfismos podem interferir no efeito terapêutico, não produzindo a ação esperada.

Mas uma pesquisa realizada no Instituto de Química da Unicamp propõe uma nova metodologia que, com a ajuda da espectroscopia Raman, é capaz de identificar os polimorfos, ou tipo de cristais, presentes nos fármacos, de maneira a melhorar a etapa de controle de qualidade.

Quimiometria

O método, que também utiliza a quimiometria - o uso de conceitos matemáticos e computacionais para extrair informação da técnica espectroscópica que usa luz - se mostrou mais eficiente e mais simples que os disponíveis no mercado.

O químico Werickson Fortunato de Carvalho Rocha realizou a parte experimental de sua pesquisa com dois fármacos fornecidos pelo SUS, a carbamazepina, um antipsicótico epilético, e o piroxicam, um anti-inflamatório.

O trabalho teve orientação de Ronei Jesus Poppi, que coordena linha de pesquisa sobre controle de qualidade de fármacos e quimiometria.

Os primeiros resultados se mostraram encorajadores. A expectativa é de que essa metodologia em breve entre em escala comercial, uma vez que ela se mostrou eficaz no controle desse problema reincidente da indústria farmacêutica brasileira.

Por que alguns remédios não funcionam

Se controlados os polimorfismos, enfatiza Rocha, eles podem possibilitar insumos com características diferenciadas, modificações necessárias no processo produtivo e fabricação de medicamentos de melhor qualidade.

Em geral, o polimorfismo ocorre quando o comprimido é sintetizado, expõe Rocha, e quando é produzido. Dependendo de sua cristalização - como essa estrutura está organizada - ele pode, ou não, desencadear o efeito desejado. Se variar a pressão ao longo da sua confecção, por exemplo, poderão ser criadas moléculas diferentes do ponto de vista de polimorfismo, limitando a ação terapêutica.

Supondo-se que haja uma mesma molécula e o seu polimorfo A, que faz o efeito esperado para curar determinada doença, quando este fármaco está sendo produzido e é feita a compressão para torná-lo comprimido, pode acontecer que esse polimorfo se transforme em um polimorfo B. Se isso ocorrer, talvez ele não promova o efeito desejado.

Poppi afirma que se o cristal tiver a forma indesejada, ao invés de agulha, prisma, ou vice-versa, isso significa que o fármaco não surtirá efeito, mesmo contendo o princípio ativo.

Nem sempre, diz, o comprimido está na forma cristalina almejada: agulha, quando os cristais são bem fininhos; prismática, quando assumem a forma de prisma; ou metagulha, quando têm uma forma intermediária entre agulha e prismática. "Em outras palavras, o efeito do remédio depende da sua forma.

"Ainda não se encontrou uma maneira de driblar de vez o problema do polimorfismo. As empresas, quando compram matéria-prima para o fármaco, se veem às voltas com esta questão, daí o mérito de empregar esta nova metodologia. "Seria uma contribuição social, no sentido de melhorar o padrão do remédio no mercado, e econômica, por representar redução do tempo das análises", acredita Rocha.

O seu estudo, salienta, contribui para verificar a distribuição dos polimórficos nas diferentes formulações farmacêuticas e gerou até agora publicações de peso em duas revistas internacionais - no Microchemical Journal e no Chemometrics and Intelligent Laboratory Systems (Chemolab).

A carbamazepina, por exemplo, tem quatro formas polimórficas, ou seja, ela pode se cristalizar de quatro maneiras distintas. A forma 3, prismática, conta Rocha, é a mais desejada no produto final que vai para o consumidor. É ela que dá o efeito do remédio. "Mas, quando retém umidade, começa a se transformar e então o prisma se torna uma agulha. Assim é preciso controlar o processo para que a umidade do ambiente não seja responsável por esta transformação, prejudicando o consumidor", adverte Poppi.

Fracionamento dos medicamentos

Outra questão, sobre a qual Rocha também se debruçou em sua pesquisa, igualmente importante, é que existem muitas pessoas que precisam fracionar o medicamento, dividindo-o em partes.

Para isso, é preciso ter certeza de que o polimorfo esteja distribuído por igual em todo medicamento. Se não estiver, o princípio ativo ficará consolidado somente de um lado.

Dessa forma, quando a pessoa toma o medicamento, ela pode correr o risco de ingerir uma alta dosagem, por consumir a parte que concentrou o princípio ativo. Se ingerir outra parte, pode não estar tomando nada, deixando de gozar das benesses do fármaco.

Assim foi realizado um mapeamento das formas polimórficas no medicamento utilizando a espectroscopia de imagem, que fornece informações sobre a distribuição de cada composto na sua superfície.

Com o uso dessa metodologia, pôde-se verificar se o polimorfo está distribuído uniformemente, pois mediante a visualização química desses cristais observa-se se de fato o medicamento está em condições ideais de consumo, principalmente quando prescrito o seu fracionamento pelo médico.

Espectroscopia Raman

A espectroscopia Raman tem como base medir o espalhamento de luz (laser) que, incidida sobre a amostra do medicamento, proporciona informações acerca dos compostos presentes no comprimido, avaliando se estão na forma desejada.

É necessário, neste caso, aliar o tratamento de dados usando a quimiometria, constata o pesquisador.

O efeito Raman baseia-se no espalhamento de luz e foi descoberto por um físico indiano que recebeu, em 1930, o Nobel da Física por sua descoberta.

Rocha utilizou-se desse efeito para realizar o estudo de polimorfismo em medicamentos distribuídos na rede de saúde pública. Uma das sacadas do método proposto por Rocha e seu orientador é que ele não usa solventes tóxicos ou outros tipos de materiais para a sua análise.

Simplesmente o comprimido é levado até o espectrômetro e avalia-se a sua interação com o espalhamento da luz. "Também não é preciso comprar reagentes para fazer este trabalho", informa Rocha.

Frutos do trabalho

Em decorrência do estudo de Rocha, ele conseguiu ingressar como pesquisador no Instituto Nacional de Meteorologia (Inmetro), no Rio de Janeiro. Lá ele pretende desenvolver materiais de referência certificados (MRC) para o polimorfismo desses fármacos, provendo laboratórios no Brasil na área farmacêutica.

A ideia é ter materiais que possam ser usados como padrão, além de garantir a qualidade de processos. "Estes itens são fundamentais para assegurar a confiabilidade metrológica dos polimorfos nos medicamentos nacionais. Além disso, é bem possível que a metodologia gere uma patente no Brasil", sinaliza.

A tese resultou, há pouco, na concessão do prêmio de primeiro colocado para Rocha na sessão de pôsteres do Congresso Chimiometrie2009, realizado em Paris, França, conferido pelo Centre de Competence em Chimie et Toxicologie Analytiques. O pesquisador recebeu uma importância em dinheiro e um software comercial para ser utilizado no Laqqa.

Para Poppi, a importância do estudo do seu orientando está no seu ineditismo, pois cada vez mais são fabricados medicamentos genéricos no país, e a inserção de novas metodologias para melhorar o controle de qualidade de fármacos vem sendo uma busca constante.

"A metodologia também pode ser útil para o estudo do tamanho de partículas e detecção de interferências em processo de qualidade na indústria farmacêutica", assinala Poppi. Por outro lado, ele ressalva que a cristalização só serve para medicamentos sólidos.

 

Fonte: Diário da Saúde - www.diariodasaude.com.br

URL:  https://diariodasaude.com.br./print.php?article=medicamentos-nao-funcionam

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