Pesquisadores brasileiros desenvolveram um treinamento para capacitar médicos e enfermeiros de Unidades Básicas de Saúde (UBS) a identificar transtornos mentais em crianças e adolescentes.
O objetivo é oferecer ao sistema de saúde brasileiro um modelo de treinamento factível para melhorar o prognóstico dos problemas de saúde mental.
"Transtornos mentais são muito prevalentes na população geral, começam na infância, são fruto de alterações do desenvolvimento cerebral, podem se tornar crônicos e levar à incapacitação na vida adulta. Uma das formas de mudar este cenário é capacitar profissionais do programa Saúde da Família para identificar precocemente aqueles que precisam de ajuda, prestar serviço e tratar os casos mais simples e encaminhar adequadamente os casos mais complexos", disse Eurípedes Constantino Miguel Filho, professor de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
O trabalho se baseia na recomendação global da Organização Mundial da Saúde (OMS) de intervenção precoce para evitar o agravamento dos transtornos mentais na vida adulta.
A estratégia sugerida pela OMS é a capacitação de profissionais de unidades de atenção primária à saúde - voltados a ações preventivas, curativas e de atenção ao indivíduo e a comunidades -, que, no modelo assistencial brasileiro, equivale às equipes de Saúde da Família das UBS e inclui médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem e agentes comunitários de saúde.
Treinamento
Na validação da metodologia, 25 profissionais participaram do treinamento-piloto - 12 médicos e 13 enfermeiros de 13 equipes de saúde da família de cinco UBS da região oeste da capital paulista.
O treinamento foi conduzido em um módulo de teleducação, criado com o apoio da área de Telemedicina da Faculdade de Medicina da USP, seguido de um módulo presencial. Para o ambiente interativo de aprendizagem foram produzidos cinco vídeos com até 10 minutos, contendo entrevistas com especialistas e ilustrações, apresentando informações sobre sintomas dos transtornos mentais mais prevalentes na infância e adolescência - depressão, ansiedade, déficit de atenção e hiperatividade, transtorno de conduta e transtornos globais do desenvolvimento (TGD).
Outros dois vídeos traziam entrevistas sobre a estrutura do sistema de saúde mental na infância e adolescência no Brasil.
Os participantes também aprenderam a usar o Questionário de Capacidades e Dificuldades para rastreamento de saúde mental na infância e adolescência, que auxilia médicos e não médicos a decidir se uma criança ou jovem deve ser encaminhado para um serviço especializado ou se deve ser acompanhado no próprio serviço de atenção primária. Durante a capacitação, os participantes contaram com o suporte de um tutorial, com recursos visuais e auditivos, explicando o objetivo do questionário e o passo a passo de seu preenchimento.
As aulas do módulo presencial se baseiam na adaptação para a realidade brasileira do treinamento Mental health communication skills for child and adolescente primary care, desenvolvido por Lawrence Wissow, professor da Escola de Saúde Pública Johns Hopkins, nos Estados Unidos, já utilizado em países da África e do Oriente Médio.
Nessa etapa, foram realizadas duas sessões de treinamento, uma para cada grupo de profissionais, em dias diferentes. A cada turma foi ministrada uma aula expositiva com 8 horas de duração, na própria UBS, com recursos audiovisuais com exemplos de situações que acontecem diariamente nos consultórios das unidades.
Avaliação do aprendizado
Um dos objetivos da pesquisa era saber se o treinamento funcionaria igualmente para médicos e para enfermeiros. Para tanto, foram aplicados questionários antes e depois das etapas de treinamento como o objetivo de avaliar o grau de conhecimento de cada participante sobre transtornos mentais e sobre a organização do sistema de saúde mental no Brasil.
Para conferir os principais aspectos aprendidos, na plataforma interativa foi solicitado também um texto de 500 palavras a cada um. Outro instrumento procurou avaliar possíveis mudanças de conhecimento, atitudes e práticas.
"De forma geral, houve aquisição de conhecimento com aumento estatisticamente significante (21,65 pontos) após o treinamento tanto entre médicos quanto entre enfermeiros. Observou-se que, mesmo tendo níveis diferentes de conhecimento, o aumento do aprendizado sobre transtornos mentais foi proporcionalmente similar para médicos e enfermeiros", disse Lowenthal.
O fato de duplas de médicos e enfermeiros de uma mesma equipe estarem capacitadas com os mesmos conceitos teóricos aumenta a cumplicidade entre eles e a chance de trocas e discussões de casos no dia a dia do atendimento clínico, observaram os autores.
Impacto do treinamento na qualidade do atendimento
A satisfação do público com o atendimento recebido, após a capacitação, também foi avaliada. Constatou-se que as mães das crianças com idade entre 5 e 9 anos, atendidas por médicos e enfermeiros treinados, perceberam mudanças de tratamento no que se refere à cordialidade e melhoria do exame clínico. Esta avaliação foi resultado de uma pesquisa realizada com o apoio de 60 agentes comunitários de saúde em 960 domicílios.
Segundo os pesquisadores, as mães relataram que se sentiram mais acolhidas e tiveram a sensação de que até o tempo de espera foi menor.
Na análise da pesquisadora e psiquiatra da infância e adolescência Ana Soledade Graef-Martins, que participou de diversas etapas do estudo, quando se cria um estado positivo de emoção as pessoas tendem a ver tudo melhor. "Observamos que esse treinamento pode beneficiar também o atendimento a outras famílias", disse Ana.
A experiência-piloto serviu de base para a ampliação da capacitação a mais 128 profissionais de quatro cidades - Goiânia (GO), Fortaleza (CE), Recife (PE) e Caeté (MG).
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